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A aula inaugural de anatomia

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Prof. Dr. Gerson Novah

Professor de anatomia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto

1953

 

Figura 1 – Elsie Russell – The Anatomy Lesson 16″x 20″,oil on canvas, 1993 (retirado de:www.parnasse.com/erlist.htm)

“Meus alunos:

Ao ingressardes nesta Faculdade, passaste por um exame austero, competente e rigoroso; seu resultado se traduz eloqüentemente na vossa presença atual neste recinto; nessas expressões felizes de vitória e de esforço compensado.

 

Sabeis que a vitória e o esforço trazem direitos irretorquíveis. Quero falar-vos um pouco desses direitos. O primeiro deles, certamente muito grande embora não o maior, é que vos assegura nesta cadeira, um estudo mais tranqüilo, quase despreocupado, sem perigos de infecção cadavérica, sem perigos de contágio, riscos e perigos esses totalmente afastados pelo advento da formolização dos cadáveres.

Alguns de vós, menos contido, mais ligeiro no julgar e mais pronto no sorrir, achareis banal, quase corriqueiro, insignificante mesmo esse direito, uma verdadeira contraposição ao grande esforço que de vós foi exigido. Não tendes razão, se lembrardes que a Anatomia passou por dias negros e difíceis, por um passado assustadoramente trágico, numa época em que a opinião pública dominada por um misticismo até certo ponto respeitável, mas, nada esclarecido, vedava terminantemente o estudo de Anatomia em cadáveres.

Aquele que a praticasse estaria sujeito a sanha justiceira e primitiva de . uma horda sangüinária de místicos prontos a perpetuar a mais primária das. justiças… ou antes a mais primária das injustiças…

Porém anatomistas de então, gênio-mártires do saber, afrontando os perigos de serem considerados violadores de cadáveres, ao cair da noite protegidos pela treva, auxiliados pela luz baça da lua – esta eterna cúmplice do coração – esses anatomistas,’dizia, associavam-se aos abutres dos campos para o furto dos cadáveres de criminosos justiçados que em árvores sombrias, oscilavam como estranhos pêndulos do relógio da justiça humana.

Furtada a presa, já putrefata algumas vezes, outras vezes ainda sangrando, o notívago usurpador, arriscando-se a toda sorte de infecções, a infecção

cadavérica, aos perigos imanentes à empresa, sem meios de conservação, realizava sobre o angustiante peso de tantas ameaças, as grandes descobertas que honram e engrandecem a ciência anatômica.

Outras vezes os fatos se passavam diferentemente; justiçados os criminosos, seus corpos deviam sofrer um sepultamento regular. As dificuldades agora eram maiores; era mister que vândalos clandestinos praticassem no próprio cemitério, à noite, a exumação do cadáver, porém, conhecida a intenção, grupos de choque se organizavam, armados e escondidos, rondavam entre tumbas à espera dos exumadores; os encontros eram terríveis e muitas vezes fatais.

Nessa época um conhecido anatomista inglês foi procurado por um homem que propunha a venda do corpo de um justiçado que deveria ser sepultado ainda aquela tarde, furtado à noitinha e entregue, na mesma noite, àquele homem de ciência.

Este inquieto, impaciente, sozinho, via as horas se passarem sem que qualquer notícia chegasse. Já a noite se intrometia pela madrugada, quando no silêncio pesado o bater aflito e violento da porta anunciou a chegada do mensageiro; um vulto, com manifesto esforço, com dificuldades trazia às costas um outro inerte, largado, sangrante ainda. Quem trazia o cadáver não era o contratante; era um vulto feminino, imagem da cor e sofrimento; de inquietação e desespero; de martírio.

Houvera luta, o cadáver não pudera ser furtado; a premência do sustento no lar daquela mulher era grande; seu marido, o contratante, tombara morto no encontro. Aquela representava a última contribuição financeira do esposo, ali estava seu cadáver para ser vendido…

Histórias trágicas e no entanto simples incidentes isolados e esparsos da grande tragédia da Anatomia.

Voltemos aos vossos direitos. Um segundo direito soubestes conquistar, meus alunos. O direito de ter deveres, e, entre os deveres, um há que excede a todos; o respeito ao cadáver e à austeridade do ambiente.

Lembrai-vos que a formação do médico e sua vida inteira se plasma na morte e na dor; junto ao cadáver ou junto ao leito do enfermo. Como num cemitério, num departamento de Anatomia entra-se com o coração e com a alma. Naquele, em desespero e dor, neste com respeito e gratidão.

Lembrai-vos que aqui a “morte se compraz em socorrer os vivos”, lembrai-vos que no convívio com a morte encontramos muitas vezes um sentido para as nossas próprias vidas.

Não trateis o cadáver como simples e mero material de estudo. Contemplai na lace gelada, descorada, quase transparente do morto, na serenidade do semblante, como o esconder-vos a amargura do náufrago ou a agonia de um sofrimento prolongado; contemplai nesse corpo descarnado, nesses membros piedosamente abandonados e caídos, alguém que talvez vivesse ainda ontem; alguém que como nós teve infância, família, carinho, lar, alguém que foi criança e que foi jovem; que teve tristezas e alegrias, esperanças e desilusões, mas que diferentemente de nós, que contamos com a cumplicidade de um destino favorável no nascimento, no.crescimento, na educação e na instrução, para eles o estranho jogo do acaso reservou apenas o lugar de marginais da fortuna, de náufragos sociais, de farrapos humanos.

Lembrai-vos que a eles faltou tudo, até mesmo o olhar amigo e acolhedor, que amargurado embora, pudesse receber, no angustioso e extremo instante, o último apelo, a última súplica, o último lampejo.

Lembrai-vos ainda que por mais onerosos, inúteis, prejudiciais ou nocivos que tivessem sido esses espólios da humanidade, o serviço que agora prestam ao bem comum, a esta e às gerações futuras, bem lhes redime a culpa por terem sido os desajustados de sua geração.

Meus alunos: estes conselhos não são novos, nem minhas estas idéias. São conselhos e são idéias que falam ao coração e a nobreza jamais desmentidas da juventude. São por isso propriedade comum, são universais. Atendei-os, é o meu pedido, atendei-os é o vosso imperativo. Eles não deixarão de falar à sensibilidade de futuros médicos.

E lembrai-vos ainda, ou tendes já neste instante a sensibilidade de médico, ou não a tereis jamais. Hoje é o verdadeiro dia de vossa decisão profissional; se não sentis digno da vocação, sacerdotal, para o nosso bem, e mais que isto para o vosso bem, cruzai hoje pela última vez os umbrais estreitos desta porta que representam os umbrais da iniciação médica, porque se não trazeis dignamente as vestes do noviciado jamais vestireis com dignidade o manto sagrado do sacerdócio”.

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