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Privilégio dos médicos

Prof. Dr. Irany Novah Moraes

 

 

Os médicos são privilegiados!

No curso de graduação aprenderam com a morte e com o sofrimento. A primeira aula, de todos os cursos, de que tenho conhecimento, é sobre “respeito ao cadáver”. Eu pessoalmente assisti à mais brilhante delas ministrada por RENATO LOCCHI na qual alertava para o intensivo e adequado aproveitamento do tempo, que passava muito rapidamente para permitir conhecer todo o corpo humano, de maneira suficiente para ser médico. Chamava a atenção para o fato que íamos estudar no cadáver e que este merecia o mais absoluto respeito. No transcorrer da aula, num gesto amplo, firme e continuo, retirando o lençol branco, descobre a mesa e, sobre o mármore gelado estava o cadáver de uma jovem negra. O mesmo com o qual AFONSO BOVERO havia dado sua aula inaugural, há várias décadas.

O impacto desencadeado pela exposição abrupta do cadáver causou profundo impacto nos jovens; suas mentes entravam em conflito para, de relance, entender o tempo de vida e o tempo de morte. A mulher, de face delicada, semblante triste, plácido, fixado em formol há mais tempo do que tivera de vida, estava permanentemente imutável. A imaginação, com suas asas soltas, mostrava a vida passar e a morte ficar!

LOCCHI, com palavra erudita, de timbre vibrante, gesticulação incisiva registrava de maneira indelével esse momento na memória do aluno. O jovem tinha a sensação de estar entrando em um mundo místico, onde a morte estava presente para ensinar os segredos da vida. Ele aprendia a respeitar os restos mortais, fragmentados pela dissecção, como sendo parte do corpo de seu semelhante. Evidenciava-se a crueldade da vida que pela vicissitude o colocara na condição de “peça” para estudo. Restava ainda a impressão de que o destino estava cobrando, depois da morte, o ônus que talvez em vida, ela tivesse causado à sociedade da qual era vítima. Aquelas circunstâncias marcavam para o futuro médico seu início na luta sem trégua contra o sofrimento e a morte. O momento era conduzido graças à fulgurante personalidade de RENATO LOCCHI e duas enormes forças se conflitavam: a vigorosa energia da juventude, ali presente, atenta e perplexa de um lado, e a frieza da morte do outro. O aluno sentia-se como se tivesse participando do ritual de sua iniciação para o sacerdócio da medicina.

Para mostrar a tradição desse tipo de aula inaugural reproduzo na íntegra a de GERSON NOVAH ministrada aos alunos do primeiro ano de Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto também da USP em 1953 e resgatada por FÁBIO VICHI LEITE:

“Meus alunos:

Ao ingressardes nesta Faculdade, passaste por um exame austero, competente e rigoroso; seu resultado se traduz eloqüentemente na vossa presença atual neste recinto; nessas expressões felizes de vitória e de esforço compensado.

Sabeis que a vitória e o esforço trazem direitos irretorquíveis. Quero falar-vos um pouco desses direitos. O primeiro deles, certamente muito grande embora não o maior, é que vos assegura nesta cadeira, um estudo mais tranqüilo, quase despreocupado, sem perigos de infecção cadavérica, sem perigos de contágio, risco e perigos esses totalmente afastados pelo advento da formolização dos cadáveres.

Alguns de vós, menos contido, mais ligeiro no julgar e mais pronto no sorrir, achareis banal, quase corriqueiro, insignificante mesmo esse direito, uma verdadeira contraposição ao grande esforço que de vós foi exigido. Não tendes razão, se lembrardes que a Anatomia passou por dias negros e difíceis, por um passado assustadoramente trágico, numa época em que a opinião pública dominada por um misticismo até certo ponto respeitável, mas, nada esclarecido, vedava terminantemente o estudo de Anatomia em cadáveres.

Aquele que a praticasse estaria sujeito a sanha justiceira e primitiva de uma horda sanguinária de místicos prontos a perpetuar a mais primária das justiças… ou antes a mais primárias das injustiças…

Pórem anatomistas de então, gênio-mártires do saber, afrontando os perigos de serem considerados violadores de cadáveres, ao cair da noite protegidos pela treva, auxiliados pela luz baça da lua – esta eterna cúmplice do coração – esses anatomistas, dizia, associavam-se aos abutres dos campos para o furto dos cadáveres de criminosos justiçados que em árvores sombrias, oscilavam como estranhos pêndulos do relógio da justiça humana.

Furtada a presa, já putrefata algumas vezes, outras vezes ainda sangrando, o notívago usurpador, arriscando-se a toda sorte de infecções, a infecção cadavérica, aos perigos imanentes à empresa, sem meios de conservação, realizava sobre o angustiante peso de tantas ameaças, as grandes descobertas que honram e engrandecem a ciência anatômica.

Outras vezes os fatos se passavam diferentemente; justiçados os criminosos, seus corpos deviam sofrer um sepultamento regular. As dificuldades agora eram maiores; era mister que vândalos clandestinos praticassem no próprio cemitério, à noite, a exumação do cadáver, porém, conhecida a intenção, grupos de choque se organizavam, armados e escondidos, rondavam entre tumbas à espera dos exumadores; os encontros eram terríveis e muitas vezes fatais.

Nessa época um conhecido anatomista inglês foi procurado por um homem que propunha a venda do corpo de um justiçado que deveria ser sepultado ainda aquele tarde, furtado à noitinha e entregue, na mesma noite, àquele homem de ciência.

Este inquieto, impaciente, sozinho, via as horas se passarem sem que qualquer notícia chegasse. Já a noite se intrometia pela madrugada, quando no silêncio pesado o bater aflito e violento da porta anunciou a chegada do mensageiro; um vulto, com manifesto esforço, com dificuldades trazia às costas um outro inerte, largado, sangrante ainda. Quem trazia o cadáver não era o contratante; era um vulto feminino, imagem da cor e sofrimento; de inquietação e desespero; de martírio.

Houvera luta, o cadáver não pudera ser furtado; a premência do sustento no lar daquela mulher era grande; seu marido, o contratante, tombara morto no encontro. Aquela representava a última contribuição financeira do esposo, ali estava seu cadáver para ser vendido…

Histórias trágicas e no entanto simples incidentes isolados e esparsos da grande tragédia da Anatomia.

Voltemos aos vossos direitos. Um segundo direito soubestes conquistas, meus alunos. O direito de ter deveres, e, entre os deveres, um há que excede a todos; o respeito ao cadáver e à austeridade do ambiente.

Lembrai-vos que a formação do médico e sua vida inteira se plasma na morte e na dor; junto ao cadáver ou junto ao leito do enfermo. Como num cemitério, num departamento de Anatomia entra-se com o coração e com a alma. Naquele, em desespero e dor, neste com respeito e gratidão.

Lembrai-vos que aqui a “morte se compraz em socorrer os vivos”, lembrai-vos que no convívio com a morte encontramos muitas vezes um sentido para as nossas próprias vidas.

Não trateis o cadáver como simples e mero material de estudo. Contemplai na face gelada, descorada, quase transparente do morto, na serenidade do semblante, como o esconder-vos a amargura do náufrago ou a agonia de um sofrimento prolongado; contemplai nesse corpo descamado, nesses membros piedosamente abandonados e caídos, alguém que talvez vivesse ainda ontem; alguém que como nós teve infância, família, carinho, lar, alguém que foi criança e que foi jovem; que teve tristezas e alegrias, esperanças e desilusões, mas que diferentemente de nós, que contamos com a cumplicidade de um destino favorável no nascimento, no crescimento, na educação e na instrução, para eles o estranho jogo do acaso reservou apenas o lugar de marginais da fortuna, de náufragos sociais, de farrapos humanos.

Lembrai-vos que a eles faltou tudo, até mesmo o olhar amigo e acolhedor, que amargurado embora, pudesse receber, no angustiosos e extremo instante, o último apelo, a última súplica, o último lampejo.

Lembrai-vos ainda que por mais onerosos, inúteis, prejudiciais ou nocivos que tivessem sido esses espólios da humanidade, o serviço que agora prestam ao bem comum, a esta e às gerações futuras, bem lhes redime a culpa por terem sido os desajustados de sua geração.

Meus alunos: estes conselhos não são novos, nem minhas estas idéias. São conselhos e idéias que falam ao coração e a nobreza jamais desmentidas da juventude. São por isso propriedade comum, são universais. Atendei-os, é o meu pedido, atendei-os é o vosso imperativo. Eles não deixarão de falar à sensibilidade de futuros médicos.

E lembrai-vos ainda, ou tendes já neste instante a sensibilidade de médico, ou não a tereis jamais. Hoje é o verdadeiro dia de vossa decisão profissional; se não sentir digno da vocação sacerdotal, para o nosso bem, e mais que isto para o vosso bem, cruzei hoje pela última vez os umbrais estreitos desta porta que representam os umbrais da iniciação médica, porque se não trazeis dignamente as vestes do noviciado jamais vestireis com dignidade o manto sagrado do sacerdócio.”

Ao término do longo curso, ainda na juventude, por imposição legal, fazem, ao se diplomar, um juramento solene, muito sério pois, invocando os deuses gregos assumem rigoroso compromisso ético, que disciplina seu comportamento para o exercício da vida profissional e conseqüentemente, também, para a social, pois não se pode tirar de dentro do médico o ser humano que ele é. As palavras finais têm o seguinte teor “se cumprir esse juramento com fidelidade, goze eu na vida e na arte, boa reputação entre os homens e para sempre, se dele afastar ou infringir suceda-me o contrário.” Assumir, com clareza e consciência essa obrigação sem, ainda, saber que é privilégio, e para sempre, é, sobretudo, muita responsabilidade. O cumprimento dessa promessa somente é conseguido se houver naturalidade, e se não exigir maior esforço e, para tal, é preciso ter vocação.

Esta vai tornar o exercício da profissão fácil e harmonioso, dando prazer em exercê-la, o que leva o médico a dedicar-se com devoção e conseqüentemente terá êxito, acompanhado da gratificação interna, que produz paz de espírito que, por sua vez, possibilita atingir a felicidade pessoal tendo consciência do estado de perfeita satisfação íntima. O segredo para o cumprimento desse voto está na manutenção da chama de eterno entusiasmo, que pode ser inspirada nos “Pensamentos” do filósofo estóico MARCO AURÉLIO, do século III d.C. que me foram ensinados pela repetição e pelos exemplos de ODAIR PACHECO PEDROSO e da LOURDES DE FREITAS CARVALHO, durante vários anos, que com eles convivi, inicialmente no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, depois na Faculdade de Saúde Pública e finalmente só com a DRA. LOURDES no Hospital Universitário todos da Universidade de São Paulo e que, a seguir, vou articulá-los.

Refugiar-se na própria alma, viver em exercício perene de auto-reflexão, para corrigir o erro e aprimorar o espírito.

Buscar, assim, a independência em relação às coisas externas, tornando a alma corajosa no choque das paixões, alheia a intrigas e futilidades.

Suportar com resignação as reviravoltas da existência, sem jamais curvar-se.

Viver diligentemente, voltado para a ação solidária, que vise ao bem comum; cuidar, porém, que cada um receba conforme seu mérito.

Decidir com firmeza e serenidade, após crítica e ponderação.

Ser benevolente e solícito para com os amigos, tolerante para com os que erram, porque o fazem na ignorância e apenas a eles aproveita o mal.

Compreender a força do amor, porque a invencibilidade é privilégio dos que se solidarizam e entendem que há, afinal, em todos nós, uma única e mesma natureza.

E, finalmente, aceitar pedagogicamente a dor e o infortúnio, na medida que as lições mais sólidas nos vêm com o sofrimento.

 

Para concluir quero sugerir aos jovens, e particularmente aos médicos residentes – que adotem essa filosofia de vida e sejam indivíduos firmes, senhores de si mesmos, inabaláveis, impassíveis e austeros, pois, só tem direito à vida quem, permanentemente, luta por ela, e assim, conseguem atingir a plenitude maior: a completa satisfação íntima!

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