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Enxergar o que não se vê

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PROF. DR. IRANY NOVAH MORAES

Ver e não enxergar é comum;

ver e enxergar, é habilidade;

enxergar o que vê é inteligência,

mas enxergar o que não se vê, é privilégio.

Todo professor tem, em seu íntimo, a permanente preocupação em ensinar. Assim, procura as mais variadas formas para atingir seu objetivo, seja despertando interesse, estimulando motivação para abrir a mente dos jovens. A lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional regulamenta o que deve mas não como deve ser ensinado. Nesse ponto é que está a diferença entre os professores. Apenas aqueles que se preocupam como se deve é que se distinguem a ponto de fazerem “escola”. São virtuosos, idealizam métodos para educar seus alunos, sabendo que eles precisarão ter muitas habilidades para adquirirem competência a fim de se desenvolverem na profissão. Nessa diferença de preparo é que está o papel superior da universidade: abrir a mente! Com mente aberta o indivíduo adquire mais facilmente, capacidade de se adaptar e assim, seguir o preceito de Darwin que diz: “não vence o mais forte mas sim o mais adaptável!”

A comunidade acadêmica, seja docente ou discente deve estar imbuída da relevância de seu papel na sociedade. Para objetivar essa mensagem vou dar exemplos da anatomia onde ocorre o primeiro impacto do aluno com a futura profissão e que para ele costuma ser o início da realização de seu sonho. É freqüente o aluno pensar equivocadamente que estão lhe ensinando o que não é importante e assim, critica a anatomia por se tratar de matéria essencialmente decorativa e por esse fato, de menor importância.

Cabe aqui uma pequena digressão para comentar a expressão moderna “de cor”e para enfatizar vem complementada com e “salteado” significando bem memorizado advém do fato dos romanos antigos acharem que a memória estava no coração. Os que assim pensam não se dão conta de que tudo que se sabe é decorado. O próprio nome também é. Assim, não há de se ver mal algum em decorar. Entretanto, muitos dos que se fixam nessa crítica primária não se aperceberam que muito além desse ensinamento a anatomia desenvolve no aluno outros predicados. Algumas exigências no ensino evidenciam certo treinamento elevado do intelecto. Todos sabem que o objetivo do curso superior é habilitar o indivíduo e torná-lo capaz de resolver problemas com que vão deparar no decorrer da vida, problemas esses até mesmo inimagináveis nos dias de hoje!

Muitos exemplos poderiam ser apresentados para comprovar tais ensinamentos entretanto vou me ater apenas a alguns para que o leitor, a partir deles, faça reflexões e encontre outros de sua própria experiência, que na ocasião não se deu conta de estar aprendendo, sem se aperceber, algo mais que literalmente não estava na lista de pontos do programa.

Cinco exemplos são apresentados a seguir:

1- Plano Geral de Construção do Corpo Humano

Este plano obedece cinco princípios a saber: a) simetria bilateral;b) metamerização; c) formação tubular; d) estratificação; e) variação dentro da normalidade.

  1. Simetria bilateral – O plano sagital mediano divide o corpo em duas metades, grosseiramente simétricas, chamadas antimeros. Tal simetria é mais aparente no exterior de que no interior do corpo.
  2. Metamerização – A superposição de elementos que se assemelham morfologicamente, é nitidamente visualizado na coluna vertebral.
  3. Formação tubular – a partir da coluna vertebral, de onde saem prolongamentos para trás e para frente formando o primeiro o tubo neural e o segundo, o ventral, é o tubo visceral. Esses dois tubos se antepõe constituindo a chamada paquimeria visceral e neural respectivamente. Ambas são envolvidas pelo tubo tegumentar.
  4. Estratificação – As várias camadas a partir do osso são: I- músculo; II- aponerose; III- tela cutânea, descrita por STERZI (1912) fica entre a pele e a “fascia muscular” constituída pela camada limitante profunda e a “areolar” superficial, ambas separadas pela facis superficialis.
  5. Variação dentro da normalidade – Dentro da normalidade pode-se considerar ainda o grande princípio da variação.

Ao aprender o PLANO GERAL DE CONSTRUÇÃO DO CORPO HUMANO obedecendo a todos os seus princípios o aluno aprende, muitas vezes, mesmo inconscientemente que a natureza não programou órgão por órgão, nem mesmo sistema por sistema e muito menos, ainda, aparelho por aparelho formando um conjunto extremamente embricado para que seja visto pelo médico ao examiná-lo de maneira global e não apenas por órgão, sistema, aparelho ou tecido.

Tendo a visão holística ele, sem muito esforço, vai ipso facto lembrar que esse indivíduo tem família, pertence a uma comunidade e integra sempre um universo maior.

2- Relevos da base do crânio

Quando se está estudando os relevos da base do crânio como as saliências e os orifícios, seja por dentro ou pela face inferior, identificando quais as artérias, veias ou nervos que por ali passam, de onde vêm e para onde vão, além de se aprender, o fato em si, mentalmente se tem a consciência da tridimensionalidade das estruturas do corpo humano.

Aprende-se por esse exercício intelectual o que se deve fazer para se identificar a minúcia dentro do contexto maior, fixa-se a idéia tridimensional do ser humano que integra estímulos de sensibilidade partindo de um extremo, processando a mensagem no sistema nervoso e ainda emitindo a ordem para execução a distancia e se for importante, ou necessário, registrar esses dados na memória!

Recentemente testemunhei um neurocirurgião, Marcelo Campos Moraes Amato (agosto/2006), desejando imaginar como atingir determinadas estruturas procurava conseguir um crânio e o encéfalo para mentalizar espacialmente essas estruturas a partir dos três eixos: sagital mediano , transversal e crânio podálico.

3- Teoria vertebral do crânio

Dentro dessa mesma linha de pensamento e com o mesmo objetivo: entender as semelhanças das diferenças, senti a necessidade de aprofundar a matéria, fato esse que torna oportuno tratar dessa teoria.

Pode-se dizer que, numa fase muito primitiva do embrião, haja analogia, ou seja, equivalência de forma entre os ossos da coluna vertebral e aqueles que constituem, no adulto, o esqueleto cefálico. Tais modificações, observadas nesse segmento da coluna vertebral, relacionam-se, diretamente, com a evolução e crescimento de seu conteúdo. Assim, o encéfalo condiciona o esqueleto que o contém, a um desenvolvimento adequado para envolvê-lo.

No homem, bem como em alguns animais superiores que têm, também, o sistema nervoso desenvolvido, os arcos dorsais das vértebras primitivas afastam-se para formar a cavidade neural. Para completar a abertura, assim estabelecida, surgem ossos de origem membranosa. Esse fato não ocorre nos animais inferiores com cérebro pequeno.

Goethe, em 1790, elaborou a chamada teoria vertebral do crânio. Confidenciou-a, em cartas particulares, a Oken, que as guardou durante vinte anos, divulgando-as depois, como idéias próprias. (Veja como o ser humano sempre foi o mesmo no artigo que publiquei em O Estado de S. Paulo, 28 de janeiro de 1993 – É preciso passar a limpo a USP). Tal teoria foi arquitetada em torno da idéia de ser o crânio constituído de tantas vértebras modificadas quantas são suas peças. Certas particularidades, como ocorre no osso occipital, induzem ao fácil entendimento de sua analogia com vértebra, ou seja, o occipital tem função equivalente à de uma vértebra. A base desse osso em tudo se assemelha a uma verdadeira vértebra – é uma vértebra modificada.

A corda dorsal do embrião corresponde à coluna primitiva; suas marcas estão nos corpos vertebrais e seus resquícios embrionários, persistentes no adulto, correspondem ao núcleo pulposo dos discos intervertebrais. Embora possa haver uma linha de analogia imaginária ao longo de toda a coluna vertebral até o dorso da sela túrcica, no esfenóide, daí para cima os ossos do crânio não são mais homólogos às vértebras, esvaece a semelhança. O esqueleto deixa de ser metamerizado, mas continua segmentado. O estudo do embrião oferece elementos que permitem estabelecer limite entre a parte metamerizada e a segmentada.

Se por um lado uma revisão autogenética permite esse raciocínio, também, a filogênese propicia outros elementos sugestivos de sua veracidade.

Assim, a anatomia comparada mostra, nos animais superiores, por serem dotados de maior vida de relação, maior desenvolvimento do esqueleto ósseo ao redor do sistema nervoso central, em detrimento das dimensões do esqueleto da face. Essa visão é mais evidente quando se comparam os ossos da cabeça do homem com os de certos macacos.

O crânio no homem, possui uma porção metamerizada adquirida secundariamente. Em teoria, o embrião evolui da seguinte forma: o crânio primitivo, sendo insuficiente para conter o encéfalo, tão desenvolvido no homem, necessitou englobar certos ossos vizinhos para ampliar-se. As vértebras da porção superior da coluna foram assim incorporadas. O crânio adquiriu então, uma porção, provinda das vértebras modificadas, situadas acima da vértebra atlas. A cúpula craniana é fechada por outro contingente de ossos neoformados.

Nos animais inferiores, o neurocrânio se reduz ao paleocrânio, enquanto no homem, além deste, há ainda o neocrânio. O contingente pertencente ao paleocrânio é essencialmente segmentado, e satisfaz a teoria vertebral do crânio, ao passo que o neocrânio tem uma porção vertebral secundariamente adquirida – occipital -, e outra não vertebral – cúpula craniana – de origem desmal.

O osso occipital compõe-se, no mínimo, de duas peças vertebrais. A abóbada craniana tem uma porção secundariamente formada. O primitivo neurocrânio é, no princípio, de origem exclusivamente cartilagínea, por ser formado pela coluna vertebral modificada em sua parte superior, que persiste nesse estado, nos animais inferiores onde o condrocrânio é suficiente para conter o encéfalo. Nos animais mais evoluídos, que apresentam aumento do encéfalo, aparecem ossos de origem membranosa, constituindo o democrânio, em quase totalidade, a calota craniana.

O conhecimento dessa teoria exige profunda reflexão para enxergar nessa evolução filogenética do estojo vertebral a construção da estrutura protetora do sistema nervoso e assim, perceber o quanto a natureza é sábia.

4- Identificação dos dentes

Sempre foi prática boveriana seguida por Renato Locchi o exercício de memorização tátil, para estudar os dentes a ponto de se poder identificá-lo, pela palpação sem auxilio da visão. De certa forma, talvez pela repetição freqüente, lembre o hábito religioso, muito mais comum entre os povos do Oriente Médio, de com um “terço” nas mãos ficarem tocando uma a uma de suas peças. Em um saquinho de pano contendo os trinta e dois dentes humanos exercitava-se a identifica-los: incisivos, caninos, pré-molares e molar, sabendo se do maxilar ou mandíbula e ainda, se do lado direito ou esquerdo!

Trata-se de um exercício de interpretação tátil, extremamente difícil, mas que, talvez, pelo seu contingente lúdico nunca foi aborrecido e sempre despertou certa competição entre meus colegas de turma para saber quem acertava mais vezes.

Evidentemente esse tempo gasto, voltando aquela época, treinava o aluno a exercitar seu cérebro, aprender a sentir “vendo pelo tato”, memorizar dessa maneira pois na verdade representava um exercício intelectual.

Tal habilidade tátil, indiscutivelmente dava aquele que se divertia com esse exercício, excelente discernimento para palpar e sentir, pulsos extremamente finos,decorrentes de estenoses a montante, com arritmias e perceber frêmitos. Apenas para ilustrar essa habilidade lembro-me que o PROF. ALÍPIO CORRÊA NETTO contava que um colega de sua época, recebeu uma bolsa para estudar clínica médica na Alemanha. Voltou com muitos conhecimentos mas também uma especial habilidade para delimitar a projeção torácica da área cardíaca pela palpação superficial deslizando os quatro dedos da mão sobre o precórdio.

Qual o demérito de se adquirir também, essa habilidade? Evidentemente no mundo moderno com tantos exames não invasivos e dando tantas informações ela não resiste a indagação central do legislador romano que pergunta “qui bono?” (a quem serve? A quem beneficia?

5- Grandes vias sensitivas e motoras

O estudo final da neuranatomia ligando, de maneira global, todas as estruturas aprendidas do sistema nervoso, dá ao aluno a integração completa entendendo assim, as vias por onde passam os impulsos, conscientes e inconscientes que mantém nossa vida animal.

Permite entender onde, dentro da complexa arquitetura do sistema nervoso, uma pequena lesão pode separar uma vida, mantendo o paciente na vegetativa e desta para a morte; porém, passando ou não pelas múltiplas etapas decorrentes de lesões nos diversos pontos do sistema nervoso.

É difícil aceitar o comportamento daquele que aprendeu essa fascinante integração e que depois de médico não examina corretamente o doente e vê, apenas o local da dor, sem considerar o paciente como um todo.

Esse fato faz a diferença do médico que examina o paciente e daquele que receita apenas tendo em vista a queixa.

6- Administração da emoção

Como não se sabe ensinar bom senso, muito menos se consegue imaginar como ensinar a administrar emoções. Esta é a resposta sistêmica de um estímulo captado por qualquer dos órgãos dos sentidos. O estímulo da visão, ouvido, odor, sabor, tato, calor ou frio, dependendo da natureza e intensidade depois de processado no tálamo desencadeia instantaneamente um estímulo pela via simpática que na medular da glândula adrenal lança adrenalina no sangue e assim estabelece a reação de alarme! Como se pode ensinar alguém controlar suas respostas? É realmente muito difícil, entretanto no curso médico tudo começa na primeira aula e durante seis anos todos os dias o sofrimento, a dor e a morte estão presentes. O médico não se torna insensível, mas aprende a conviver nesse contexto e assim, criar forças para servir de apoio ao doente e seus familiares.

Vou reproduzir duas aulas clássicas de anatomia de introdução ao curso médico. Tratam-se das aulas inaugurais nos “campus” de São Paulo Prof. Renato Locchi e de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo ministrada pelo Prof. GERSON NOVAH., resgatada esta por FÁBIO LEITE VICHI, em Reminiscências de um médico, 3ª ed. Ribeirão Preto, SP, p. 91 a 93, 2001.

PROF. RENATO LOCCHI

A Aula Magna ministrada por Renato Locchi, que eu assisti, alertava para o intensivo e adequado aproveitamento do tempo, que passava muito rapidamente para permitir conhecer todo o corpo humano, de maneira suficiente para ser médico. Chamava a atenção para o fato de que íamos estudar no cadáver e que este merecia o mais absoluto respeito. No transcorrer da aula num gesto amplo, firme e contínuo, retira o lençol branco, descobre a mesa e, sobre o mármore, estava o cadáver de uma jovem negra. O mesmo com o qual Alfonso Bovero havia dado sua aula inaugural há algumas décadas.

O impacto desencadeado pela exposição abrupta do cadáver impressionava profundamente o jovem; sua mente entrava em conflito para, de relance, entender o tempo de vida e o tempo de morte. A mulher de 28 anos, de face delicada, semblante triste, plácido, fixado em formol há mais tempo do que teve de vida, estava permanentemente imutável.

Locchi, com palavra erudita, de timbre vibrante, gesticulação incisiva e viva marcava esse momento na memória do aluno. O jovem tinha a sensação de estar entrando em um mundo místico, onde a morte estava presente para ensinar os segredos da vida. Ele aprendia a respeitar os restos mortais, fragmentados pela dissecação, como sendo parte do corpo de seu semelhante. Evidenciava-se a crueldade da vida que pela vicissitude o colocara na condição de “peça” para estudo. Restava ainda a impressão do destino estar cobrando, depois da morte, o ônus que, talvez em vida, ela tivesse causado à sociedade, da qual era vítima. Aquelas circunstâncias marcavam para o futuro médico seu início na luta sem trégua contra a morte. O momento era conduzido graças à fulgurante personalidade de Renato Locchi e duas enormes forças se conflitavam: a vigorosa energia da juventude ali presente, atenta e perplexa de um lado, e a frieza da morte do outro. O aluno sentia-se como se estivesse participando do ritual de sua iniciação para o sacerdócio da medicina.

Após a aula inaugural procedia-se à visita ao Laboratório: – 1. A Sala de Bovero – A sala do Professor Alfonso Bovero era mantida como ele a deixara. Lá estavam: seu longo avental, amarelado pelo tempo; o apontador e a mesa de trabalho. A visita a esse local era feita com respeito e em absoluto silêncio. Dava a impressão de se estar em um altar de uma Catedral. – 2. Busto de Bovero – A memória de Bovero, mantida permanentemente pelo seu busto de olhar severo, estrategicamente localizado no saguão do Laboratório, garantia a sensação de sua onipresença naquele ambiente. – 3. Biblioteca – A biblioteca da Anatomia estava no roteiro de visita dos alunos. Locchi exibia o acervo, com orgulho de mostrar o mais valioso monumento de culto a seu fundador. Inicialmente, ele apresentava a coleção de livros raros. Mostrava a seguir a coleção de Índices e Catálogos usados para a pesquisa bibliográfica, no campo da Anatomia. Gabava-se das coleções de revistas estarem completas e sem nenhuma falha. A seguir indicava a estante dos tratados clássicos. Extrema satisfação se evidenciava quando entrava em um recesso da Biblioteca onde, em altas estantes e em prateleira corretamente classificadas, estavam caixas contendo a mais rica coleção de separatas de publicações de pesquisas. Bovero havia iniciado meticulosamente essa coleção de documentos e Locchi vinha contribuindo permanentemente para sua atualização. – 4. Museu de Peças – A estação seguinte da Via Anatômica era o Museu de Peças, cuidadosamente iniciado por Bovero e com a participação de todos os anatomistas que trabalhavam naquele laboratório. Museu riquíssimo em peças das mais variadas preparações. Cada uma, das muitas diafanizadas, representa centenas de horas de trabalho. A coleção de peças do sistema linfático é preciosa; há também muitas conservadas por outros métodos. Integra ao acervo uma coleção de mil e quinhentas peças, constituídas de línguas e laringes, minuciosamente catalogadas quanto ao grupo étnico, sexo e idade pelo próprio Prof. Bovero. Uma coleção de máscaras de gesso de índios brasileiros faz parte do patrimônio do Museu. – 5. Museu de Ossos – A outra parada ocorria no Museu de Ossos, onde mais de uma centena de esqueletos completos estão catalogados e guardados em gavetas adequadas. Dois comentários eram feitos: um mostrando um crânio de adulto negro masculino, onde as arcadas dentárias estavam completas e íntegras e outro, numa vitrine adquirida na Alemanha, com a reprodução de um esqueleto de feto com todos os seus ossos, incluindo os ossículos do ouvido médio, e, em seguida, mostrava outra semelhante, feita por um funcionário do Laboratório que, embora não dispondo de formação alguma, tinha grande habilidade, muita dedicação e amor ao que fazia.

A Reforma Universitária levando os cursos básicos para os Institutos transferiu parte desse patrimônio histórico da Faculdade de Medicina da USP para o Campus da Cidade Universitária no Instituto de Ciências Biomédicas.

PROF. GERSON NOVAH

“Meus alunos:

Ao ingressardes nesta Faculdade, passaste por um exame austero, competente e rigoroso; seu resultado se traduz eloqüentemente na vossa presença atual neste recinto; nessas expressões felizes de vitória e de esforço compensado. Sabeis que a vitória e o esforço trazem direitos irretorquíveis. Quero falar-vos um pouco desses direitos. O primeiro deles, certamente muito grande embora não o maior, é que vos assegura nesta cadeira, um estudo mais tranqüilo, quase despreocupado, sem perigos de infecção cadavérica, sem perigos de contágio, risco e perigos esses totalmente afastados pelo advento da formolização dos cadáveres.

Alguns de vós, menos contido, mais ligeiro no julgar e mais pronto no sorrir, achareis banal, quase corriqueiro, insignificante mesmo esse direito, uma verdadeira contraposição ao grande esforço que de vós foi exigido. Não tendes razão, se lembrardes que a Anatomia passou por dias negros e difíceis, por um passado assustadoramente trágico, numa época em que a opinião pública dominada por um misticismo até certo ponto respeitável, mas, nada esclarecido, vedava terminantemente o estudo de Anatomia em cadáveres.

Aquele que a praticasse estaria sujeito a sanha justiceira e primitiva de uma horda sanguinária de místicos prontos a perpetuar a mais primária das justiças… ou antes a mais primária das injustiças…

Porém anatomistas de então, gênio-mártires do saber, afrontando os perigos de serem considerados violadores de cadáveres, ao cair da noite protegidos pela treva, auxiliados pela luz baça da lua – esta eterna cúmplice do coração – esses anatomistas, dizia, associavam-se aos abutres dos campos para o furto dos cadáveres de criminosos justiçados que em árvores sombrias, oscilavam como estranhos pêndulos do relógio da justiça humana.

Furtada a presa, já putrefata algumas vezes, outras ainda sangrando, o notívago usurpador, arriscando-se a toda sorte de infecções, a infecção cadavérica, aos perigos imanentes à empresa, sem meios e conservação, realizava sobre o angustiante peso de tantas ameaças, as grandes descobertas que honram e engrandecem a ciência anatômica.

Outras vezes os fatos se passavam diferentemente; justiçados os criminosos, seus corpos deviam sofrer um sepultamento regular. As dificuldades agora eram maiores; era mister que vândalos clandestinos praticassem no próprio cemitério, à noite, a exumação do cadáver, porém, conhecida a intenção, grupos de choque se organizavam, armados e escondidos, rondavam entre tumbas à espera dos exumadores; os encontros eram terríveis e muitas vezes fatais.

Nessa época um conhecido anatomista inglês foi procurado por um homem que propunha a venda do corpo de um justiçado que deveria ser sepultado ainda aquela tarde, furtado à noitinha e entregue, na mesma noite, àquele homem de ciência.

Este inquieto, impaciente, sozinho, via as horas se passarem sem que qualquer notícia chegasse. Já a noite se intrometia pela madrugada, quando no silêncio pesado o bater aflito e violento da porta anunciou a chegada do mensageiro; um vulto, com manifesto esforço, com dificuldades trazia às costas um outro inerte, largado, sangrante ainda. Quem trazia o cadáver não era o contratante; era um vulto feminino, imagem da dor e sofrimento; de inquietação e desespero; de martírio.

Houvera luta, o cadáver não pudera ser furtado; a premência do sustento no lar daquela mulher era grande; seu marido, o contratante, tombara morto no encontro. Aquela representava a última contribuição financeira do esposo, ali estava seu cadáver para ser vendido…Histórias trágicas e no entanto simples incidentes isolados e esparsos da grande tragédia da Anatomia.

Voltemos aos vossos direitos. Um segundo direito soubestes conquistar, meus alunos. O direito de ter deveres, e, entre os deveres, um há que excede a todos; o respeito ao cadáver e à austeridade do ambiente. Lembrai-vos que a formação do médico e sua vida inteira se plasma na morte e na dor; junto ao cadáver ou junto ao leito do enfermo. Como num cemitério, num departamento de Anatomia entra-se com o coração e com a alma. Naquele, em desespero e dor, neste com respeito e gratidão. Lembrai-vos que aqui a ‘a morte se compraz em socorrer os vivos’, lembrai-vos que no convívio com a morte encontramos muitas vezes um sentido para as nossas próprias vidas.

Não trateis o cadáver como simples e mero material de estudo. Contemplai na face gelada, descorada, quase transparente do morto, na serenidade do semblante, como o esconder-vos a amargura do náufrago ou a agonia de um sofrimento prolongado; contemplai nesse corpo descamado, nesses membros piedosamente abandonados e caídos, alguém que talvez vivesse ainda ontem; alguém que como nós teve infância, família, carinho, lar, alguém que foi criança e que foi jovem; que teve tristezas e alegrias, esperanças e desilusões, mas que diferentemente de nós, que contamos com a cumplicidade de um destino favorável no nascimento, no crescimento, na educação e na instrução, para eles o estranho jogo do acaso reservou apenas o lugar de marginais da fortuna, de náufragos sociais, de farrapos humanos.

Lembrai-vos que a eles faltou tudo, até mesmo o olhar amigo e acolhedor, que amargurado embora, pudesse receber, no angustioso e extremo instante, o último apelo, a última súplica, o último lampejo. Lembrai-vos ainda que por mais onerosos, inúteis, prejudiciais ou nocivos que tivessem sido esses espólios da humanidade, o serviço que agora prestam ao bem comum, a esta e às gerações futuras, bem lhes redime a culpa por terem sido os desajustados de sua geração.

Meus alunos: estes conselhos não são novos, nem minhas estas idéias. São conselhos e são idéias que falam ao coração e a nobreza jamais desmentidas da juventude. São por isso propriedade comum, são universais. Atendei-vos, é o meu pedido, atendei-vos é o vosso imperativo. Eles não deixarão de falar à sensibilidade de futuros médicos.

E lembrai-vos ainda, ou tendes já neste instante a sensibilidade de médico, ou não a tereis jamais. Hoje é o verdadeiro dia de vossa decisão profissional; se não sentis digno da vocação sacerdotal, para o nosso bem, e mais que isto para o vosso bem, cruzai hoje pela última vez os umbrais estreitos desta porta que representam os umbrais da iniciação médica, porque se não trazeis dignamente as vestes do noviciado jamais vestireis com dignidade o manto sagrado do sacerdócio”.

As aulas apresentadas evidenciam a carga emocional que o jovem de dezoito anos recebe no primeiro dia de aula. ele sente a impressão que passou pelo ritual místico da admissão a vida sacerdotal da profissão.

No decorrer dos anos subseqüentes seu contato em cada etapa do curso é uma lição para administrar a emoção. Assim: na anatomia topográfica com o cadáver inteiro, cabelos raspados e conservado em formol, na anatomia patológica com cadáver ainda com cabelo e sem conservação. Na enfermaria o paciente morrendo e a família chorando ao lado.O médico assim convive com a dor, sofrimento, e com a morte. Embora não acostume pois a cada episódio ele também morre um pouquinho! Assim, ele se contém e nesse sofrimento íntimo aprende a administrar a dor e consegue ser o amparo do seu paciente e da dor alheia. Nesse exercício cresce e desenvolve a força para continuar firme na profissão.

Por falar em vida sacerdotal é conveniente lembrar a interpretação de Alípio Corrêa Netto sobre o sacerdócio afirmando que nada tem a ver com não remuneração do trabalho mas sim com devoção a ele.

7- Últimas palavras aos jovens

  1. Se o leitor for médico jovem, não sentiu o que aprendeu na anatomia, sem se dar conta, ainda há tempo, exercite sua memória, resgate esses ensinamentos e faça suas reflexões.
  2. Se nada disso ocorrer julgue sua escola. Ela ainda lhe deve isso, cobre-a!
  3. Porém, se a memória não falhar você não sentir esse algo mais, lembre-se que “somente se deve falar quando a mensagem for melhor do que o silêncio”, prometa, para si mesmo, que quando falar aos jovens transmita mensagens positivas, eles não merecem lamúrias e frustrações pessoais.

8- Realidade nacional

  1. As boas escolas devem ser estimuladas para serem ótimas.
  2. Novas escolas com potencial comprovado de serem ótimas devem ser bem-vindas.
  3. Mas as más escolas mesmo que sejam gratuitas devem ser fechadas. São inadimplentes. Só dão diploma e não formam nem médicos e muito menos cidadãos.

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