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Cânones da Beleza

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Prof. Dr. Irany Novah Moraes

 

Há muitos anos fui professor de anatomia artística na Escola de Belas Artes de São Paulo. Esse privilégio foi por curto período mas tempo suficiente para despertar a constante busca da parcela de beleza contida em tudo que se observa no cotidiano. Essa preocupação acompanhou-me ao longo do tempo e, estou certo, me fez ver a vida com bons olhos.

Sempre achei que encontraria algo de belo colocado pela natureza, nos relevos cutâneos modificados pela postura, movimentos e gestos; bem como na interpretação dos fenômenos, nas relações humanas, na convivência social ou na anatomia que ensinava, que alguns chamam de anatomia de superfície, aliás, talvez caiba lembrar Millôr Fernandes quando diz “a beleza é a inteligência que está por fora”. Indago, quem sabe não seja ela, paradoxalmente, a mais profunda por ser dinâmica e pela emoção que traz chegando à alma do modelo vivo! Quanto mais refleti sobre o tema, mais me encantei sobre ele. Acresce ainda minha vida vivida em hospital onde as grandes dificuldades são apresentadas em “reuniões de casos” ou de “óbitos” em que participam médicos e residentes para discuti-los. Os participantes aprimoram sua cultura científica e refinam seu raciocínio clínico para chegar ao diagnóstico que, às vezes, só é confirmado após necropsia. É comum ouvir-se, ao término da discussão, a exclamação: “que caso bonito!”. A dificuldade do diagnóstico, desafiando a competência científica, e as reflexões elaboradas, revelam o esforço, na busca da verdade, o que, dentro do infortúnio do paciente, evidencia a beleza da inteligência.

Recentemente precisei definir a altura adequada para colocar um corrimão de escada que permitisse, a uma paciente com a mais forte garra de recuperar-se do traumatismo de coluna e de tornozelo, ampliar os limites de seu ambiente e ter convalescença amenizada, fora do pesado, monótono e restrito espaço hospitalar. O simples corrimão daria a liberdade de subir e descer as escadas com absoluta segurança não sobrecarregando as articulações em fase inicial de cura. Ouvi a opinião daqueles que, para mim, deveriam saber melhor determinar a altura procurada. Na falta de teoria convincente, parti para o “ensaio e erro”, na terceira tentativa foi achado o ponto ideal, a solução veio a contento. Esse fato levou-me a refletir sobre a importância de se conhecer as “medidas necessárias para o bem estar dos pacientes em suas próprias casas”. Assim, voltei a estudar a teoria das proporções do corpo humano.

“Tudo que o homem cria é destinado a seu uso pessoal”, afirma E. Neufert e fundamenta tal assertiva de maneira inequívoca o fato, de que, todas as medidas utilizadas devem estar relacionadas diretamente ao corpo humano. Esse foi o motivo pelo qual, através dos séculos, adotou-se como unidade, os membros, o que abole a necessidade de se estabelecer conceitos e nem mesmo de definição pois, por si próprio, dá uma idéia viva do tamanho, tornando seu entendimento evidente.

Com o advento do sistema métrico, tudo mudou, pois metro é a unidade, fundamental das medidas de extensão ou lineares. É igual à décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre compreendido entre o pólo boreal (do hemisfério norte) e o equador, e equivale a quatro palmos, quatro polegadas e quatro linhas pelo antigo sistema. Ganhou-se em precisão mas perdeu-se na compreensão explícita da evidência. As necessidades pessoais, os hábitos individuais, coletivos, familiares modificaram-se com o decorrer dos tempos. A utilização dos ambientes inclui entre os fatores de sua variação também o emocional que o espaço cria em quem o ocupa.

Retornando ao caso apresentado, imagino a emoção que sentiu a paciente ao deixar as quatro paredes onde, imobilizada na horizontal por dois meses, só enxergava o teto do quarto da Unidade de Terapia Intensiva. Ao sentar-se, viu a vida ativa de seu lar num raio de mais de meia centena de metros usufruindo o privilégio de participar do cotidiano. Lembro-me do brilho em seus olhos quando proferiu a exclamação: “como é belo o mundo visto na horizontal”.

A preocupação de se conhecer as dimensões dos espaços e objetos que integram a necessidade do homem para viver o dia a dia, qualquer que seja sua atividade, faz parte da formação do arquiteto mas ele não pode esquecer que o homem fica doente, suas necessidades modificam-se e ele deve permanecer em sua casa evitando atravancá-la com cama hospitalar que raramente são necessárias e geralmente não ajudam a resolver o problema. Arquitetura hospitalar é outra especialidade e não é sobre ela que me refiro mas, ao conforto e segurança da criança, do homem doente e do idoso em seu próprio lar.

O estudo desse assunto iniciou-se comparando as dimensões dos segmentos com o próprio corpo humano. Assim apareceram os cânones, cujo princípio é dividir a dimensão do corpo humano pelo tamanho da cabeça, da face, do membro ou do pé e compará-los entre si. O mais antigo cânon de proporções humanas tem mais de cinco mil anos e a história conta que teria sido encontrado num túmulo das pirâmides de Mênfis (capital do antigo Egito, no delta do Nilo). Nesse longo período, artistas e cientistas interessam-se pelo estudo das relações entre as medidas do corpo humano e de seus segmentos. Entre os muitos cânones conhecidos convém lembrar os do império faraônico, da época de Ptolomeu, o dos gregos, dos romanos e o de Policleto. Não se pode esquecer os trabalhos de Leonardo da Vinci, de Miguel Ângelo e na idade média principalmente de Dúrer. Sua importância foi grande, no século passado com trabalhos de Zeising preocupando-se em encontrar proporções ideais, mas foi E. Moessel que teve o grande mérito de divulgá-las. Entretanto, foi Le Corbusier que, em 1945, utilizou em seus projetos o cânon baseado na divisão harmônica chamando-o de “Le Modulor”.

A beleza embora aparentemente superficial decorre da modelação externa das estruturas internas e profundas uma vez que o ser humano, dinâmico como é modifica a cada movimento ou mesmo a cada momento a sua aparência.

Para melhor entendimento dessa problemática convém explanar sobre os princípios gerais de construção do corpo humano.

Princípio da metameria – éaquele do qual resultam os segmentos chamados metâmeros que se superpõe e se correspondem morfologicamente. Havendo analogia, há correspondência morfológica, enquanto, na homologia a equivalência é funcional. A metamerização não ocorre apenas no esqueleto, pois também pode ser vista examinando-se o homem com os membros superiores e inferiores em abdução máxima. Os miótomos revelam a metameria oculta.

Princípio da formação tubular – é aquele do qual resultam cavidades ou tubos sejam eles visceral ou neural; anterior ou posterior respectivamente. A coluna tem papel relevante nesse entendimento, pois do corpo das vértebras partem prolongamentos, para diante e para traz, formando: a grande cavidade ventral ou visceral e a dorsal ou neural. Envolta dos dois tubos existe outro, o tegumentário. Duas grandes regiões decorrem do estabelecimento do plano transverso crânio caudal que separa o corpo em dois Paquímeros: o anterior, Tubo visceral e o posterior, Tubo neural.

Princípio da estratificação – no que diz respeito a teoria geral de construção do corpo humano pode-se considerar em uma visão macroscópica as camadas onde no centro está o osso, envolta do qual está disposta a camada muscular e sobreposta a ela a aponevrótica e sobre esta, a tela subcutânea formada por traves conjuntivas denominadas “retinacula” e glomérulos de gordura dispostos em duas camadas areolar e lamelar, separada pela facis superficialis sobre o qual está o tegumento ou pele formada pela epiderme com três camadas – germinativa, granulosa e córnea – bem como pela derma constituído de conjuntivo elástico e musculatura lisa. Nesta as papilas dérmicas na superfície da pele são as que dão as impressões digitais (cristais cutâneas). É oportuno lembrar aqui, pelo fato de seu conhecimento possibilitar entendimento de problemas de alteração da estética corpórea. Foi Sterzi, que em 1912, estudou profundamente a arquitetura da pele bem como a estrutura da tela subcutânea salientando as diferenças nítidas dos extratos superficiais quando confrontados com os subjacentes mostrando o papel da gordura nos relevos externos observando que a gordura superficial é mais frouxa, é a primeira a ser queimada nas necessidades do organismo, mostrou ainda que, há uma homologia entre a musculatura cutânea e a facis superficialis uma vez que a presença de uma é em quantidade inversamente proporcional a da outra.

Dois pontos ainda merecem atenção: o conhecimento da direção dos feixes do derma, que sendo respeitados no ato cirúrgico permite cicatrizes quase invisíveis. O segundo é a Lipofilia ou seja a distribuição preferencial da gordura para determinadas regiões. Tal tendência é mais influenciada pelo fator sexual porém com algumas variações que parecem sugerir certa metamerização apagada. Assim pode-se estabelecer cinco tipos de distribuição preferencial de gordura a saber: cervicalis; humeralis; abdominalis; membralis (raro) e coxalis com dois subtipos glúteo ou esteatopígio e trocanteriano ou cavalariano.

Princípio da recordação filogenética – com base nesse princípio admite-se que o indivíduo ao nascer tenha passado pelas várias etapas em que estão os animais da escala zoológica. Dessa idéia é que resultou a clássica frase a “ontogênese é uma recordação da filogênese”. Ontogênese é a série de transformações por que passa o indivíduo desde a fecundação do ovo até o ser completo. É pois, uma recordação, no prazo de uma gestação das várias etapas em que estão os vertebrados passando de simples, inferiores, segundo a teoria do transformismo, aos complexos e superiores; peixes, batráquios, répteis, aves, mamíferos e nestes o ser humano. Muitos defeitos congênitos resultam da parada da evolução de certos segmentos do corpo humano deixando resquícios embrionários como por exemplo algumas fístulas branqueais.

Princípio da variação dentro do normal – Os sistemas que formam o organismo apresentam determinadas características que se refere a um ser humano, ideal. No plano de construção genérico, que vai até o individual, há um grande princípio de variação dentro do normal, sendo este considerado aqui do ponto de vista estatístico, como o mais freqüente. Os problemas estéticos aparecem com maior ênfase exatamente nos limites dessa normalidade pois são de definição subjetiva devendo-se, nesse julgamento, sempre respeitar a opinião do próprio paciente. Este será influenciado por múltiplos fatores como: idade, sexo, etnia, cultura, bem como aspectos psicológicos, paradigmas imaginários e anseios íntimos !

Princípio da simetria bilateral – este princípio resulta da separação teórica do corpo pelo plano sagital mediano que o divide em duas metades opostas, direita e esquerda denominadas antimeros. Externamente a simetria é maior do que internamente é influenciada pela assimetria fisiológica decorrente do destrismo ou mancinismo, considerado por alguns como característica evolutiva, porém o homem primitivo era ambidestro.

É importante saber que a simetria bilateral na face, habitualmente não é perfeita. A diferença é tal ponto que os anatomistas clássicos chegaram a estudar profundamente o assunto, utilizando a fotografia e cortando o negativo na linha sagital mediana; reconstruindo assim, com duas hemifaces do mesmo lado obtinham figuras muito diferentes. Os dois lados direito juntos lembra facilmente o indivíduo; e a composição com os lados esquerdos formam uma figura tão diferente que eles diziam que se tratava da facis bestialis.

Pode-se entender que se um paciente apresentar uma lesão do lado direito que desejar corrigir, o cirurgião terá como paradigma o lado esquerdo. Quanto mais perfeita for a similaridade conseguida no ato cirúrgico, o paciente ficará mais diferente de si próprio.

Todas as reflexões foram elaboradas à procura do conjunto harmônico ideal que poderá ser chamado de Cânone da Beleza. Há, porém, que se considerar nesse contexto a emoção que ocorre ao se ver formar o conjunto das proporções harmônicas transformar-se em miragem e esta revelando a beleza da vida.

 

Um alerta na busca da beleza

Até cortar os defeitos pode ser perigoso, nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício interior.

Clarice Lispector

 

Eventualmente uma operação estética que não satisfaça as expectativas da paciente, leva a busca de novo cirurgião para ser reoperada. Agora as condições são outras e, por mais virtuoso que seja o cirurgião plástico, as dificuldades são maiores.

A reoperação em casos de cirurgia estética malograda não pode ser considerada como outra cirurgia estética. Deixa de ser da natureza da primeira para tornar-se cirurgia reparadora. Não é mais estética pelo fato de não atuar sobre o órgão em condições originais, mas sim alterado pelas seqüelas cirúrgicas. Toda reoperação é mais complexa do que a original, portanto com maiores riscos, uma vez que os procedimentos cirúrgicos são feitos sobre estruturas já manipuladas, onde a resposta orgânica alterará a anatomia original, tornando-a mais susceptível a isquemias, devido às cicatrizes, hemorragias, pela neoformação vascular circunjacente à área manipulada, e sobretudo à infecção, pelo fato de o tecido estar alterado e conter material utilizado para hemostasia: fios inabsorvíveis e absorvíveis ou pontos de hemostasias produzidos pela eletrocoagulação.

Tais intervenções merecem preocupação redobrada por parte do médico, uma vez que a insatisfação do paciente é sempre muito grande. Entende-se que assim o seja pelo acréscimo de descontentamento gerado pela expectativa frustrada. Além do motivo que gerou a insatisfação inicial e que havia levado a procurar método cruento para modificar sua própria aparência, revelando assim, profundo desgosto com sua imagem. Nessa altura, desejar ainda nova operação revela insatisfação aumentada. Caso o paciente procure outro médico, como ocorre, muita vez, revela mais perturbação emocional com o problema, o que, por sua vez, comprova assim alteração psicológica ainda maior.

Espero ter ajudado o juiz a considerar o conflito de quem busca a beleza que Deus não lhe deu, e que é operada pelo homem que jamais chegou à perfeição divina mas, que não o condene pela limitação humana.

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