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Alexis Carrel (1873 – 1944) e o Líquido de Dakin

alexis

William Moffitt Harris

Professor Doutor Aposentado da Faculdade de Saúde Pública da USP

 

A justiça histórica deveria ser feita e o líquido ou fluído de Dakin ostentar tanto o nome do químico inglês Henry Drysdale Dakin quanto o do cirurgião francês Alexis Carrel. Trata-se de uma solução aquosa tamponada de hipoclorito de sódio, diluída a 0,5%, usada no mundo inteiro como antisséptico e conhecida apenas como líquido ou fluído de Dakin.

Trabalhando juntos, o antisséptico foi desenvolvido pelos dois profissionais em 1914 e 1915 durante a Primeira Guerra Mundial, perto da linha de frente de Compiègne, no Hospital Militar Rand-Royal subvencionado pelo Instituto Rockefeller para Pesquisas Médicas. A pesquisa foi levada a efeito a partir de diferentes concentrações do princípio ativo, visando a se achar um antisséptico eficaz. 1

Estudando a vida de Alexis Carrel, chega-se a imaginar que de fato seu nome foi boicotado do contexto, ao longo dos anos, devido a rixas surgidas com seus antigos mestres, que foram, posteriormente, seus comandantes durante o conflito.

Carrel nasceu em Saint Foy-lès-Lion. Foi batizado com o nome Auguste mas assim que faleceu seu pai (em 1877), foi-lhe atribuído seu nome Alexis, conforme o costume na época para honrar os mortos. Estudou na Escola de Medicina de Lion onde ingressou aos 17 anos em 1890, tendo se diplomado em 1900. Havia se interessado desde cedo na técnica de sutura de vasos em cães, idealizando o ponto triangular ancorado assim como a agulha curva que vêm sendo utilizados, há décadas, em microcirurgia vascular. Na adolescência, havia freqüentado a roda de costura de sua mãe e, quando acadêmico, voltou ao grupo para observar como as senhoras procediam. Viu a aplicabilidade de sua técnica à cirurgia vascular e, mesmo como estudante, publicou trabalhos expondo suas experiências em animais neste setor.

Em fins de 1893, iniciou sua especialização em cirurgia, após acirrada disputa pelas três vagas existentes. Foi o segundo colocado entre os 57 candidatos. Em junho de 1894 Carrel observou seus professores em Lion tentarem salvar, sem sucesso, a vida do presidente francês Marie François Sadi Carnot esfaqueado nas costas pelo anarquista italiano Sante Caserio. Criticou-os severamente por não terem conseguido suturar a veia porta que havia sido atingida pela lâmina do assassino. Tinha uma personalidade difícil: era arrogante e irascível. 2

Seus professores nunca o perdoaram por isto, inclusive bloqueando toda e qualquer ascensão em sua carreira na França. No mesmo ano de 1904, Carrel tentou a vida no Novo Mundo, trabalhando no ramo de gado de corte em Montreal, no Canadá, onde foi descoberto e reconhecido como um dos pioneiros em cirurgia vascular experimental. Dois anos antes havia suturado com sucesso as extremidades de uma artéria secionada. Os americanos acabaram o atraindo para o Laboratório Fisiológico Hull da Universidade de Chicago em 1905, onde iniciou experiências em transplantes renais em animais. Foi um dos responsáveis pela divulgação dos resultados bem sucedidos do cultivo de células nervosas fora do corpo animal em 1907 por Ross Granville Harrison das Universidades de Yale e Johns Hopkins. Um seu assistente, Montrose Burrows estudando meios de cultura descobriu que o plasma de galinha era o ideal para tecidos humanos. Carrel e Burrows trabalharam juntos durante dois anos antes que este último se mudasse para a Universidade de Cornell.

Em 1911 Carrel publicou seu primeiro artigo sobre o cultivo de tecidos. Foi considerado muito importante pela mídia mundial, cuidadosamente trabalhada pelo vaidoso autor. Fazia questão de publicidade!

Em várias ocasiões, foi-lhe oferecido a cidadania americana, mas sempre a recusou polidamente porque se considerava um patriota francês.

Devido a suas pesquisas em microcirurgia vascular, Alexis Carrel ganhou, em 1912, o primeiro Prêmio Nobel (na época, 39 mil dólares) de Medicina e Fisiologia para os Estados Unidos. Carrel era tão conhecido mundialmente pelos seus estudos com cultivo de tecidos que durante algum tempo pensou-se que o prêmio lhe havia sido atribuído por esta razão, o que revoltou alguns cientistas que sabiam da primazia do Harrison.

É fácil compreender porque lhe faziam restrições de ambos os lados. Foi um francês e não um americano que ganhou na América o cobiçado troféu. Para os franceses, Carrel, francês de nascimento, havia ganho o prêmio para a América e não para a França.

Casou-se em 1913 com a enfermeira Anne Marie de la Meyrie que foi sua grande companheira até o fim de sua vida em 1944.

Em 1914, assim que eclodiu a Primeira Guerra Mundial, voltou para a França na qualidade de voluntário. Seus antigos mestres e desafetos eram agora militares de alta patente no quadro médico do exército. O rancor persistira durante todos aqueles anos, o que veio a dificultar muito o trabalho de Carrel nos hospitais. Os resultados de suas pesquisas, em parceria com Dakin, referentes à eficácia do hipoclorito de sódio como antisséptico eficaz, só foram reconhecidos e aceitos oficialmente pelo governo francês no fim de 1915.

Terminado o conflito na Europa, Carrel reassumiu seu posto no Instituto Rockefeller de Pesquisas Médicas, nos Estados Unidos, e galgou paulatinamente a posição de professor pleno. Em 1935 publicou seu famoso livro Homem, este desconhecido ( um outro livro foi editado postumamente em 1950: Reflexões sobre a conduta da vida). Continuou suas pesquisas com cultura de tecidos e tornou-se mais famoso nesta linha do que com a microcirurgia de vasos. Suas palestras tornaram-se muito populares nos Estados Unidos. Em 1936 desenvolveu uma bomba de corrente sangüínea, que foi considerada o primeiro coração artificial do mundo.

Aposentou-se do Instituto Rockefeller e voltou à sua amada França por ocasião da Segunda Guerra Mundial, em 1939, a fim de dar a sua contribuição na qualidade de médico, não se importando se seus pacientes eram franceses, alemães ou ingleses. O governo francês de Vichy, marionete dos nazistas, o designou como diretor geral de um grande hospital da Fondation Française pour l´Étude des Problèmes Humaines devido a sua competência e fama mundial.

Com a liberação, em 1944, iniciou-se a caça às bruxas e os nacionalistas da Resistance, comandados por De Gaulle, aplicaram o rito sumário para todos identificados como colaboradores do regime de Vichy e dos nazistas, fuzilando ou encarcerando-os. O Marechal Pétain, por exemplo, herói nacional da Primeira Guerra Mundial, passou o resto de sua vida na cadeia. 3

Embora nunca tenha se provado coisa alguma contra ele, Alexis Carrel foi enquadrado e os guardas republicanos foram à sua residência prendê-lo, amplamente anunciado na rádio local, mesmo sem ele ter sido formalmente indiciado. Por ironia do Destino, o cientista, com 7 1 anos de idade e já doente por alguns meses, havia falecido nove horas antes.

 

Bibliografia consultada: 1) MOSELEY, J. – Alexis Carrel, the man unknown. Journey of na idea. Journal of the American Medical Association, 244(10): 1119-21, Sept. 1980. 2) Verbetes sobre Alexis Carrel e Sadi Carnot em The New Encyclopædia Britannica, Micropædia, Vol.2, pp. 589 e 578 (respectivamente),

1 Este hospital foi destruído pelos alemães em março de 1918 por bombardeio aéreo.

2 O presidente Sadi Carnot era amicíssimo de D. Pedro II, tendo inclusive providenciado suas exé-quias em 1891 quando este faleceu em Paris.

3 A Enciclopédia Britânica informa que se falava em cerca de 10.000 execuções por ocasião da liberação da França. Após o restabelecimento da justiça e nos dois anos que se seguiram houve 125.000 pessoas indiciadas, resultando em cerca de 40.000 sentenças prisionais e de 700 a 800 condenações à morte. Houve perto de 50.000 indivíduos punidos com a “degradação nacional” e perda dos direitos políticos por um número variável de anos. (The New Encyclopædia Britannica, Macropædia, Vol.7, p. 676, 1980.)

 

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